O requisito fundamental para o pregador, na concepção reformada, é comissão. A pregação pública do evangelho é tarefa primordial dos ministros da Palavra, isto é, de homens chamados por Deus, reconhecidos como tais pela igreja, e ordenados por imposição de mãos de um presbitério para o ofício. "Pregação", escreveu Lloyd-Jones, "não é alguma coisa que um homem decide fazer. O que acontece, isso sim, é que ele se torna consciente de um chamado".[i] As razões bíblicas para esse requisito já foram consideradas, e podem ser assim resumidas: primeiro, o próprio termo grego para pregador designa um porta-voz especial mente comissionado para a proclamação pública oficial da vontade do soberano que representa; segundo, no Novo Testamento, apenas pessoas comissionadas por Deus especificamente para a tarefa (Cristo, João Batista, apóstolos e evangelistas) são encontradas como sujeitos legítimos do verbo em grego; terceiro, de acordo com Romanos 10: 15, pregação pressupõe comissão: "E como pregarão se não forem enviados?”[ii]. A advertência divina em Jeremias 23 :21 ,31-32 revela o que Deus pensa a respeito da intromissão desautorizada no ministério da Palavra: "Não mandei esses profetas, todavia eles foram correndo; não Ihes falei a eles, contudo profetizaram ... Eis que eu sou contra esses profetas, diz o Senhor, que pregam a sua própria palavra, e afirmam: Ele disse. Eis que eu sou contra os que profetizam sonhos mentirosos, diz o Senhor, e os contam, e com as suas mentiras e leviandades fazem errar o meu povo; pois Eu não os enviei, nem Ihes dei ordem..."
Isto não significa que os crentes de
modo geral não possam evangelizar e testemunhar da esperança que neles há,
individual e informalmente. É dever de todo crente estar preparado para
explicar as razões da sua fé (1 Pe 3: 15). Também não significa que não possam
instruir-se, aconselhar-se, exortar-se, encorajar- se e confortar-se mutuamente
(conferir Colossenses 3: 16 e I Tessalonicenses 5:11,14). Significa, sim, que
apenas aqueles que foram comissionados interna e externamente por Deus, estão
por Ele autorizados para, em nome dele e com a autoridade dele, se levantar
publicamente e solenemente proclamar: "Assim diz o Senhor", pois para
isso foram autorizados.
Esse é o ensino reformado sobre o
assunto. Lutero, por exemplo, afirma no seu comentário sobre a Epístola aos
Gálatas:
"A vocação [para o ministério] não deve ser assumida
leviana- mente, pois não é suficiente que uma pessoa tenha conhecimento. Ele
precisa estar certo de haver sido devidamente vocacionado. Aqueles que exercem
o ministério sem a devida vocação almejam bom propósito, mas Deus não abençoa
os seus labores. Eles podem ser bons pregadores, mas não edificam".[iii]
Comentando Romanos 10:15, "como
pregarão se não forem enviados?", Lutero escreve:
Isso é dirigido contra todos os mestres presunçosos e
instrutores arrogantes. Essas quatro assertivas (10: 14-15) seguem-se de tal
modo que uma conduz à outra, mas de maneira que a última se constitui no
fundamento sobre o qual as demais se firmam. Logo, 1. É impossível que preguem aqueles que não forem enviados. 2. É impossível que ouçam aqueles que não têm
um pregador. 3. É impossível que
creiam em quem não ouvem. 4. É impossível
que invoquem Aquele em quem não crêem. A essas, deve ser acrescentada uma
última, qual seja: 5. É impossível que aqueles que não invocam o
nome do Senhor sejam salvos. Assim, portanto, toda a fonte e origem da salvação
dependem disso: que Deus comissione alguém (um verdadeiro ministro da Palavra). Se Ele não enviar alguém,
então aqueles que pregam o fazem falsamente, e a pregação deles não é, de modo
nenhum, pregação... Com essa citação o
apóstolo mostra que só podem pregar aqueles que forem enviados (por
Deus). Não podem pregar a Palavra divina e ser mensageiros de Deus aqueles
que não forem enviados e a quem não foi confiada a sua Palavra.[iv]
Calvino também trata do assunto. Ele
afirma nas Institutas que "ninguém deveria assumir um ofício público na
igreja, sem um chamado (Hebreus 5:4; Jeremias 17: 16). Portanto, para que
qualquer homem seja considerado um verdadeiro ministro da igreja, deve primeiro
ser devidamente chamado; e, em segundo lugar, deve responder ao seu chamado,
isto é, deve assumir e desempenhar o ofício que lhe for designado".[v] Comentando Jeremias 29:30-32, ele
observa que Semaías foi condenado, "porque assumiu o ofício profético, sem
um chamado"; e conclui:
"Ninguém deve ser considerado um mestre legítimo, a
não ser que demonstre que foi chamado do alto. Eu já mencionei em diversas
ocasiões que a vocação tem dois aspectos; a vocação interna foi primordial
quando a igreja estava em estado de desordem... Mas, quando a igreja está
correta e regularmente formada, ninguém pode arrogar-se pastor ou ministro, a
não ser que seja também chamado pela escolha de homens".[vi]
Thomas Smith, biógrafo de Calvino,
observou que “a autoridade para pregar o evangelho também procede da comissão
que Cristo deu a todos a quem ele, na qualidade de único Cabeça da igreja, a
quem todo o poder foi dado nos céus e na terra, qualificou para a tarefa”.[vii] Sinclair Ferguson, no prefácio de A
Arte de Profetizar, de Perkins, afirma que "para Perkins, profetizar
[pregar] é tarefa do ministro do evangelho, como alguém colocado na grande
sucessão dos profetas bíblicos e apóstolos que, expuseram a Palavra de Deus..."[viii] Charles Bridges adverte que
"onde o chamado é manifesto, a promessa é assegurada. Mas se formos sem
ser enviados, nossos labores não serão abençoados".[ix] Ele acrescenta:
Na antiga dispensação, a intromissão [desautorizada] no ofício sacerdotal era considerada a mais
perigosa presunção (ver Números 18:7 e 2 Crônicas 26: 16-20). Também não
constitui um ato de menor usurpação assumir, sem autorização, autoridade na
igreja de Cristo. Nosso próprio Cabeça apresentou-se com autoridade delegada, e
não auto-comissionado... (Isaías 48:16; 61:1; João 8:16,42)... Não podemos conceber um arauto, um
embaixador, um mordo mo, um vigia, um mensageiro, um anjo, com uma autoridade
auto-comissionada... Ambas as vocações [interna e externa], embora
essencialmente distintas quanto ao seu caráter e fonte, são indispensáveis para
o exercício da nossa comissão... a vontade de Deus é a única norma da vocação
de qualquer homem, e o único portão pelo qual ele pode entrar para o
Ministério. [x]10
Os símbolos de fé presbiterianos
também atribuem aos ministros da Palavra o ofício da pregação e do ensino. A Forma
de Governo Eclesiástico Presbiteriano reconhece quatro ofícios ordinários ou
permanentes na igreja: "pastores, mestres, e outros governantes
eclesiásticos [presbíteros], e diáconos".[xi] Aos pastores (ministros da Palavra) e aos mestres (uma
especialização do ministério da Palavra) compete regularmente a leitura e
pregação públicas da Palavra e a ministração dos sacramentos."[xii] Os ministros da Palavra devem ser
legitimamente vocacionados e ordenados pela imposição de mãos de outros
ministros da Palavra do presbitério.[xiii]" Segundo o Catecismo Maior, a
pregação da Palavra de Deus é função exclusiva daqueles que foram chamados,
comissionados e habilitados para esse ministério. A resposta de número 158
afirma: "A Palavra de Deus deve ser pregada somente por aqueles que têm
dons suficientes, e são devidamente aprovados e chamados para o
ministério".[xiv] A Constituição da Igreja
Presbiteriana do Brasil define o "ministro do evangelho", como
"o oficial consagrado pela igreja, representada no presbitério, para
dedicar-se especialmente à pregação da Palavra de Deus, administrar os
sacramentos, edificar os crentes e participar, com os presbíteros regentes, do
governo e disciplina da comunidade".[xv] Já o "presbítero regente é o representante imediato
do povo, por este eleito e ordenado pelo Conselho, para, juntamente com o
pastor, exercer o governo e a disciplina e zelar pelos interesses da igreja a
que pertencer".[xvi]
Como alguém pode certificar-se de
haver sido chamado? Quais os requisitos que devem ser buscados em alguém que
aspira ao episcopado? Seria o entusiasmo de jovens recém-convertidos, prazer e
aptidão de falar em público, ou coisa semelhante? Obviamente, não. No terceiro
capítulo da primeira carta a Timóteo e no primeiro capítulo de sua carta a
Tito, Paulo relaciona urna série de qualidades necessárias ao ministério. Entre
essas qualidades estão: boa reputação moral (temperança, sobriedade, modéstia,
liberalidade e domínio próprio), maturidade na fé (não deve ser neófito), apego
e fidelidade à Palavra (de onde provém o verdadeiro poder para exortar e
convencer) e aptidão para o ensino (e para o estudo, é claro). Em adição a essas,
há outras qualidades ou requisitos altamente desejáveis para o exercício do
ofício específico de ministros da Palavra, mencionados pelo apóstolo em outras
passagens bíblicas.
Transcrito de Introdução à Pregação Reformada, Paulo
Anglada, Knox Publicações, pp. 86-91.
[iii] Martinho
Lutero, Commentary on the Epistle to the Galatians (1535), trad.
Theodore Graebner (Grand Rapids, Michigan: Zondervan Publishing House, 1949),
I: 1 (itálicos nos originais).
[iv] Martinho
Lutero, Commentary on Romans, trad. J. Theodore Mueller (Grand Rapids:
Kregel, 1954), 149-50.
[vi] Calvino, Commentary on the Prophet Jeremiah, vol. 2, p. 219. Ver
também Calvino, Commentary on the Epistle to the Romans, 30; J. H. Merle
d' Aubigné, "The Ecclesiastical Ordinances", em History of the Reformation in the Time of Calvin, vol.
7 (Albany, Oregon: Ages, 1998),79.
[viii] Sinclair B. Ferguson, Prefácio à The Art of Prophesying ; por
William Perkins, xi. Perkins
trata da vocação como requisito essencial para o exercício do ministério da
Palavra em sua obra: "The Calling of the Ministry", 187-91.
[ix] Charles
Bridges, The Christian Ministry: With An Inquiry into the Causes of its inefficiency, 3ª ed. (publicada
originalmente em 1830; reedição, Edinburgh e Pennsylvania: The Banner of Truth
Trust, 1997), 90.
[x] Bridges, The Christian
Ministry, 90-92. Bridges cita os exemplos dos diversos ajudantes de
Paulo mencionados nominalmente em suas cartas. entre os quais Áquila e
Priscila, para demonstrar que nem todo crente fiel e devotado à obra tem que
ser ordenado ao Ministério (Ibid., 94).
[xv]
Capítulo IV, seção 2.
[xvi]
Capítulo IV, seção 3
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