DEFININDO “ESSENCIAIS E NÃO ESSENCIAIS”
Antes de deixarmos essas observações, uma questão adicional precisa ser considerada. Será visto que, se o ensinamento Puritano do Princípio Regulador for considerado proeminente, então inevitavelmente a questão de nossa prática sobre ordem, governo e adoração na igreja assume uma importância ímpar no meio evangélico. Poderemos, portanto, estar predispostos a concluir, com Whitgift, que os Puritanos, chamando atenção a assuntos externos e a questões “não essenciais à salvação”, não estavam corretamente fazendo distinção entre pontos fundamentais (os Evangelhos e as doutrinas da fé) e secundários. Whitgift disse a Cartwright que a tendência da política Puritana era de provocar “a derrota do Evangelho através de contendas sobre questões externas(...). Certamente, tratando-se de questões “necessárias à salvação” então há justa causa em quebrar a paz da igreja por elas; mas se são questões de menor peso, então você não poderá desculpar-se a si mesmo ou a eles”. [5] De modo semelhante, Bishop Hel declarou que era “mil vezes melhor engolir uma cerimônia do que despedaçar uma igreja”.
Richard Hooker usou essa mesma distinção entre essenciais e não essenciais em resposta à acusação Puritana de que o fundamento da Igreja Elizabetana não aceita a autoridade das Escrituras na sua totalidade. Ele afirmava que rejeitar o ponto de vista Puritano de autoridade bíblica de modo algum negava “a absoluta perfeição das Escrituras”, porque Deus concebeu as Escrituras para serem “uma completa instrução em todas as coisas necessárias à salvação... assim as Escrituras, sim, cada sentença ali, é perfeita, não carecendo de nenhum requisito ao propósito para o qual Deus a deliberou”.[6] Coisas tais como cerimônias, ordem, disciplina, e governo, Whitgift e Hooker defendiam, são à parte do Evangelho e das questões de fé. Por alegar a necessidade da autoridade das Escrituras a questões não necessárias para a salvação, os Puritanos eram denunciados de alargarem e deturparem a Bíblia para cobrir áreas nas quais Deus nunca pretendeu dar instruções definitivas.
Podemos apenas brevemente indicar a natureza da resposta Puritana a tal acusação. Eles asseguravam que o único fundamento sobre o qual a salvação de pecadores depende é a verdade concernente à pessoa e obra de Jesus Cristo (I Coríntios 3.11). Contudo há também um número de outras verdades explicitamente reveladas nas Escrituras as quais não podem ser classificadas estritamente como “necessárias à salvação”, pois um homem pode não compreendê-las ou se equivocar a respeito delas e ainda assim ser salvo. “Não tenho dúvida que muitos dos pais da Igreja Grega” afirma Cartwright, “os quais foram grandes patronos do livre-arbítrio (pelo menos até onde vão suas palavras) são salvos, mantendo-se firmes no fundamento da fé o qual é Cristo”.[7] Whitgift luta para evitar isto (repreendendo Cartwright por “falar tão perigosamente”) porque o argumento de Cartwright derruba sua premissa de que as Escrituras somente falam claramente naquilo que é “necessário para salvação”. Como um ortodoxo protestante Elizabetano ele tem que concordar que as Escrituras são decisivamente contra o livre-arbítrio. Assim sendo, se Cartwright está certo, a Bíblia fala autoritativamente sobre uma questão “não-essencial” – não essencial, isto é, de acordo com a definição de Whitgift, explicitamente, não necessária para a salvação. Whitgift não pode aceitar esta conclusão e, ao invés disso, responde que se uma pessoa morre sustentando o livre-arbítrio ela não pode ser salva.
Para os Puritanos, Whitgift estava tentando manter uma distinção que não poderia ser mantida. Os Puritanos consideraram o hábito de seus oponentes de discriminar entre essenciais e não-essenciais um procedimento perigoso. Perigoso, não porque pretendiam exaltar Cristo e o Evangelho ao seu lugar supremo, mas por enfatizar que o Novo Testamento não oferece segurança àqueles que reconhecidamente negligenciam ao menor dos mandamentos de Cristo. Samuel Rutherford diz:
“Nós frisamos a imutabilidade das leis de Cristo, tanto nas questões menores como nas maiores, posto que são os mandamentos de Cristo, o maior ou o menor, com respeito ao assunto intrínseco, tal como o uso de água no batismo, ou batizar é menos importante do que pregar a Cristo, e crer nele (I Coríntios 1.17). Contudo eles são ambos importantes, no que tange a autoridade de Cristo o Comandante (Mateus 28.18,19). E é muita ousadia alterar qualquer mandamento de Cristo, por menor que seja a questão, pois se ele reside na nossa consciência não pode ser de maior ou menor importância... mas por nos prender à autoridade do doador da Lei: assim, a autoridade de Deus é a mesma quando diz: Não adorarás falsos deuses, e quando diz, não acrescentarás de ti mesmo nem um anel ou pino à arca, tabernáculo, templo, sim, pois violar um desses mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, faz da pessoa a menor no reino dos céus (Mateus 5.18)”.[8]
É verdade que uma pessoa salva pela graça pode, através de circunstâncias e ensinamento errado, não ser capaz de ver tudo o que as Escrituras requerem relativamente à Igreja; os Puritanos nunca consideraram pontos de vista corretos sobre a constituição da Igreja como se fossem um teste da graça salvadora. Mas o seu reconhecimento de que nem todas as verdades reveladas são verdades fundamentais sem as quais ninguém é salvo, não significa, como aponta Henry Barrow, que seja permitido fazer “algumas doutrinas e algumas partes do Testamento de Cristo fundamentais e substanciais, outras acidentais e como tal podendo ser alterados ou violadas sem prejuízo ou dano para a alma”.[9] O fato de que uma pessoa possa ser incompleta em conhecimento e prática, e ainda assim ser salva por permanecer no fundamento que é Cristo, não dá permissão para dividir as Escrituras em essenciais e não-essenciais – pondo as regras concernentes à igreja visível na segunda categoria e assim podendo ser deixadas de lado. John Robinson, o pastor da Pilgrim Fathers, faz a seguinte observação a respeito das verdades essenciais:
“Por mais que reconheça a diferenciação de verdades, e que algumas são mais e outras menos importantes, desejo maior consciência na aplicação dessa distinção. Pois embora os ministros e o povo na Igreja Inglesa estejam sujeitos à obediência ao Novo Testamento por leis civis e eclesiásticas, isto se torna um anestésico para toda aflição pois crêem ter a substância do Evangelho, a doutrina da fé, todas as verdades fundamentais e tudo o mais que é necessário para a salvação. Na defesa de que (como é feito) há três perversidades:
1º) “Por isto os homens não apenas se empenham, quando muito, em curar Babel (isto é, a igreja estabelecida), mas até mesmo em fazer Babel crer que ela nem necessita ser curada: as suas feridas não são nem mortais nem perigosas”.
2º) “Isto tende a aviltar e tornar de pouco impulso ou importância muitas das verdades e ordenanças do Senhor”.
3º) “A alegação feita pelos ministros, de que eles detêm e desfrutam todas as verdades fundamentais, e tudo o mais necessário para a salvação, considerando sua finalidade, isto é, a suspensão por parte do povo do esforço para obediência e confissão da vontade de Deus e ordenanças de Cristo, são ambas danosas ao crescimento e obediência do povo de Deus”.
“...Ela insinua que é suficiente ao homem servir a Deus até o ponto de obter salvação, mesmo com desobediência de grande parte da revelada vontade de Deus: levando o povo a servi-Lo apenas, ou principalmente por uma paga ou retribuição, como fazem os hipócritas. Como se uma criança fosse ensinada a honrar e agradar seu pai até ponto de obter sua herança, mas não ao ponto de se, preocupar em dar a ele qualquer honra ou serviço posterior”.[10]
Foi uma deturpação da posição Puritana o que fez Whitgift ao afirmar que Cartwright considerava “governo externo mais precioso do que as doutrinas da fé”.[11] A história do evangelismo Puritano Elizabetano fez tal acusação ridícula. O que os Puritanos disseram foi que a ordem correta da Igreja não pode ser desconectada do Evangelho: “Deus não apenas ordenou que a Palavra fosse pregada, mas também determinou em que ordem e por quem ela seria pregada”.[12] Eles estavam convencidos de que quando a ordem de Deus é violada o Evangelho em si mesmo será brevemente pervertido. Portanto Tyndale afirma que foi quando os bispos e a hierarquia se levantaram na Igreja que " o arado se enviesou; a Escritura se tornou obscura; Cristo não mais era percebido”.[13] Por outro lado, foi quando a Igreja se manteve próxima à Palavra, que o Evangelho brilhou em sua pureza e poder. Rutherford, fazendo uma retrospectiva em setenta anos de luta para assegurar uma melhor ordem na igreja visível, não hesitou em escrever, em 1646: “Considerem se milhares a mais não teriam sido convertidos se o governo de Cristo tivesse sido estabelecido como o Sr. Cartwright, Sr. Udal, Sr. Deering, e os mais santos suplicaram ao Parlamento”.[14]
Nenhum comentário:
Postar um comentário