As Escrituras e “As Questões Indiferentes” (parte 3)

ORIGENS DA CONTROVÉRSIA EM TORNO DO PRINCÍPIO REGULADOR 
O estudo do ensinamento Puritano tem geralmente começado com o primeiro uso do termo “Puritano” nos anos 1560 depois que a rainha Elizabeth subiu ao trono. Contudo, há boas razões para se crer que se tomarmos essa data como o ponto de partida do movimento Puritano nós adotaremos um ponto de vista que os próprio Puritanos não aceitariam. Desde os anos 1570 quando John Whitgift acusou Thomas Cartwright, o líder Puritano de Elizabeth, de estar ateando um “fogo de discordia”, a linha oficial padrão contra os Puritanos era a de que eles eram inovadores, culpados de perturbar a igreja com opiniões novas. Essa propaganda atingiu seu clímax nos termos do Ato de Uniformidade de 1662: “Onde no primeiro ano da finada rainha Elizabeth houve uma ordem uniforme de serviço comum e oração e da administração dos sacramentos, ritos e cerimônias, na Inglaterra... ainda assim... por grande e escandalosa negligência dos ministros em usar a dita ordem de liturgia, grande desordem e inconveniência tem ocorrido e crescido”.[15] 

Em contraste com essa propaganda, pode-se afirmar que o ensinamento essencial dos Puritanos Elizabetanos remonta às origens da Reforma Inglesa – trinta anos antes da rainha Elizabeth subir ao trono em 1558. Parece haver pelo menos duas razões para isto não ter sido frequentemente reconhecido. 

1) Atenção não tem sido dada à divergência política entre William Tyndale (c. 1494-1536) e Thomas Cranmer (1489-1556). Esses dois homens eram mais ou menos contemporâneos em idade, embora quando Cranmer se tornou arcebispo de Canterbury em 1533, Tyndale, um fugitivo escondido em Flanders, tinha apenas três anos restantes de vida. Tyndale não era apenas um tradutor, mas também um líder natural e um escritor excepcional, capaz de impressionar outros. Não foi sem razão que Sir Thomas More o chamou de o “principal dos hereges Ingleses”. Cranmer, como sabemos, era também um influenciador político, levando a Reforma à posição oficial característica do reinado do rei Eduardo VI. Mas, essas eram duas posições políticas que, mesmo objetivando interesses Protestantes, não eram compatíveis entre si: a diferença essencial entre ambas se refere ao Princípio Regulador das Escrituras. 

Cranmer gradualmente veio a aceitar as Escrituras como a única autoridade em matéria de fé, mas não aceitou que a Igreja fosse limitada em suas cerimônias, práticas e governo, apenas ao Novo Testamento. Um exemplo disso é o fato de que em 1539 ele afirmou que o uso de confissão era “um requisito e aconselhável” embora concordasse que não era expressamente ordenada nas Escrituras.[16]Similarmente, no reinado de Edward, enquanto aceitava que “bispos e sacerdotes não eram duas coisas, mas ambos um único ofício no começo da religião de Cristo”[17] ele não via necessidade de retornar ao Novo Testamento a esse respeito. 

Em contraste, Tyndale exigiu que, não apenas o credo da Igreja, mas também sua organização e culto, deveriam ter bases Escriturísticas. “Nós somos os portadores do Testamento de Deus”, ele diz, “por tudo o que fizermos”. Uma das acusações contra os escritores do amigo de Tyndale, John Frith, pelos seus perseguidores católicos, era de que ele sustentava e seguia “heresia”; ou seja: “O Espírito não quer que nada seja feito, que não seja expressamente registrada em detalhes nas Escrituras”.[18] 

Similarmente, a seguinte “heresia” foi atribuída a Tyndale; “cerimônias de igreja afastaram o mundo de Deus”. Em apoio a esta asserção, John Foxe cita as seguintes palavras de Tyndale: “Busque a Palavra de Deus em todas as coisas, e sem ela não faça nada, mesmo que pareça glorioso”.[19] A posição de Tyndale era de que qualquer coisa introduzida na Igreja, sem o preceito ou promessa das Escrituras, não passa de mera superstição. Ouçam-no aplicando esse princípio ao culto de confirmação: 

“Se a confirmação tem uma promessa, então justifica-se até ao ponto onde vai a promessa. Se entretanto não tem uma promessa, então não é de Deus, como os bispos não são...Depois que os bispos abandonaram a pregação, então inventaram essa cerimônia muda de confirmação, para terem pelo menos algo através do qual pudessem reinar sobre suas dioceses... Eles dizem que o Espírito Santo é dado por meio de tais cerimônias. Se Deus assim o prometeu, então que assim seja; mas Paulo diz (Gálatas 3), que o Espírito é recebido através da pregação da fé”.[20] 

As palavras de Tyndale, é claro, descrevem a prática comum do papado, mas ao exigir uma promessa das Escrituras, ou autorização, eles estavam usando um princípio que não deveria perder sua relevância depois que os Atos de Uniformidade declararam a nação “protestante”. 

Uma investigação sobre Tyndale mostra que existe pouco nos ensinamentos dos Puritanos Elizabetanos que não seja uma continuidade do que já pode ser encontrado, em forma embrionária, nos escritos do mártir. Tyndale afirmou a igualdade do ofício ministerial contra o episcopado; ele denunciou a presença de bispos no parlamento: Ele defendeu a restauração do diaconato à sua função própria no Novo testamento; ele quis que os benefícios fossem devolvidos ao povo e não utilizados por senhores espirituais ou seculares: ele afirmou que a autoridade da igreja é derivada somente de Cristo, e que no domínio espiritual, “o rei é tão sujeito ao oficial espiritual a ouvir a Palavra de Deus sobre o que deve acreditar, como viver, como governar, quanto o mais pobre pedinte do reino”. Ele também ensinou que ministros devem ser escolhidos para o cargo pela congregação de crentes, de outro modo homens seriam apontados em igrejas “não por suas virtudes e aprendizado, mas por serem favorecidos por recomendações de homens influentes.” 

2) Uma segunda razão porque o Puritanismo é tão frequentemente considerado como tendo suas origens no período Elizabetano é porque era do interesse de solidariedade protestante não mostrar a seriedade das divergências entre os Reformados da Inglaterra no reinado do rei Eduardo. Alguns dos mais importantes documentos relacionados à matéria ainda estão para serem impressos em inglês. As maiores referências orbitam em torno da controvérsia entre John Hooper e Nicholas Ridley, em 1550, e entre John Knox e Thomas Kraumer em 1552-1553. Essas duas controvérsias eram ambas vitalmente ligadas ao Princípio Regulador e marcaram o começo de uma oposição baseada na acusação que Hooper e Knox, juntamente com outros, estavam causando disputas desnecessárias ao deixarem de praticar coisas que não eram contrárias às Escrituras mas simplesmente indiferentes. As duas coisas particularmente em questão eram o uso de vestimentas e as rubricas ou títulos de capítulos no Segundo Livro de Orações da Igreja Anglicana exigindo a postura de joelhos na mesa de comunhão. 

Hooper e Knox se opuseram a essas duas coisas alegando que a Igreja não tinha autoridade para impor ritos de significado religioso, não prescritos nas Escrituras: “Não há nada a se fazer na Igreja”, diz Hooper, “que não seja ordenado na Palavra de Deus, seja expressamente ou por conclusão necessária”.[21] Nicholas Ridley, bispo de Londres, e o arcebispo Cranmer consideraram essa abordagem obviamente impossível e pertubadora que nem mesmo requeria refutação Escriturística. Em suas réplicas eles puseram ênfase naquilo que consideraram ser as mais nocivas conseqüências, se tais ensinamentos fossem aceitos. Ridley, respondendo a Hooker, disse: 

“Se esta razão deve ter lugar, os Apóstolos não a usaram, portanto não é legal para nós usarmos”- ou ainda, “se eles o faziam, nós necessitamos fazê-lo”. Nesse sentido, então, os cristãos não deveriam ter lugar onde residir, todos deveriam, sob pena de perdição eterna, abandonar suas possessões, como Pedro disse que fizeram, vejam, nós deixamos todas as coisas, etc.; não devemos ter ministração dos sacramentos de Cristo na igreja, porque eles não tinham igreja, mas eram obrigados a fazer tudo em suas próprias casa; devemos batizar em campo aberto, ao relento, como os apóstolos o fizeram; não podemos receber a santa ceia a não ser no jantar, e com a mesa servida com outras carnes, como os anabatistas fazem hoje, de forma cerimoniosa e que obstinadamente, afirmam que deve ser; o dar nome a uma criança no batismo, as nossas orações por ela, nossas intercessões, a nossa tripla renúncia e bata batismal, tudo deve ser abandonado, pois não podemos provar, pela Palavra de Deus que os apóstolos assim faziam.[22] 
Cranmer escreve na mesma linha aos Lordes do Conselho Privado do Rei que detinham as rédeas da autoridade na Igreja: 
“Eu sei que a sabedoria de vossas autoridades é tal que eu confio não sereis movidos por esses espíritos gloriosos e inquietos, que não querem nada a não ser o que procede de sua própria extravagância, e não cessam de criar perturbação e inquietudes quando as coisas deveriam estar serenas e em ordem. Se tais homens devem ser ouvidos, embora o livro seja renovado a cada ano, ainda assim, não deve ele ser isento de falhas na opinião deles. Mas, dizem eles, não é ordenado nas Escrituras o ajoelhar, e tudo o que não é ordenado nas Escrituras é contra as Escrituras, e terminantemente ilegal e pecaminoso. Mas tal declaração é o principal fundamento do erro dos anabatista e diversas outras seitas. Essa afirmação é uma subversão de toda a ordem tanto na religião quanto em política comum. Se tal declaração for verdadeira, então todo o Livro de Culto deve ser descartado. Por que deveria um homem trabalhar para estabelecer uma ordem na forma de culto, se nenhuma ordem pode ser estabelecida a não ser aquela que está prescrita pelas Escrituras? É porque não perturbarei a vossa autoridade recitando muitas Escrituras de provas com relação a essa matéria, quem quer que ensine tal doutrina (se vós me deixares) porei o meu pé ao lado do dele para ser testado pelo fogo, que tal doutrina é falsa, e não apenas falsa mas também sediosa e perigosa de ser ouvida por quem quer que seja, como algo que quebra as rédeas da obediência desprendendo-os do vínculo das leis do príncipe soberano”.[23] 

Vinte anos depois John Withgift desenvolveu a mesma linha de pensamento contra Cartwright. “Se tudo deve necessariamente ser reduzido à forma de governo usada no tempo dos apóstolos“, ele escreve, “então o príncipe cristão deve abdicar de sua autoridade na Igreja”.[24] Tal conclusão era monstruosa para Whitgift. Similarmente, ele argumentava que não poderia haver lógica razoável no argumento de Cartwright de que a “Igreja no tempo de S. Paulo era um corpo perfeito sem arcebispos e arquidiáconos; portanto eles não são necessários na Igreja de Cristo”. Porque se tal raciocínio fosse válido você também poderia argumentar, “então seria também perfeito sem magistrados cristãos: portanto os magistrados também devem ser retirados da Igreja”. “Esse tipo de raciocínio”, ele conclui, “é muito perigoso, e abriu uma porta ao anabatismo e à confusão”.[25]

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