(século XVII)
Alimentar
as almas dos crentes, na segura e certa esperança da vida eterna. Pois esta
ordenança é um sinal e um penhor, para quantos o receberem em conformidade com
a instituição de Cristo, de que Ele, em conformidade com a Sua promessa, pela
virtude e pelo poder do Seu corpo crucificado e do Seu sangue, alimentará tão
certamente as nossas almas para a vida eterna como os nossos corpos são
nutridos por pão e vinho para esta vida temporal. E com esta finalidade Cristo,
na ação desta ordenança, dá realmente o Seu próprio corpo e o Seu próprio
sangue a todo fiel participante.[1]
Por isso a ordenança é chamada "comunhão do corpo e do sangue do
Senhor" (1 Co. 10: 16). E a comunicação não é de coisas ausentes, mas de
coisas presentes.[2] Nem seria Ceia do Senhor,
se o corpo e o sangue do Senhor não estivessem ali.
Cristo está
verdadeiramente presente na ordenança por uma união dupla: a primeira delas é
espiritual, entre Cristo e o participante digno; a segunda é memorial, entre o
corpo e o sangue de Cristo, e os sinais externos presentes na ordenança. A
primeira é produzida por meio do Espírito Santo que, habitando em Cristo e nos
crentes, incorpora os fiéis em Cristo como Seus membros, sendo Ele a cabeça. Dessa
forma os faz um com Cristo e participantes de todas as graças, da santidade e
da glória eterna, que estão nEle, tão certa e verdadeiramente como ouvem as
palavras da promessa e participam dos sinais externos da santa ordenança. Daí
decorre que a vontade de Cristo é verdadeiramente vontade do cristão, e que a
vida do cristão é Cristo, que vive nele (Gál. 2:20).
Se o interessado observar
as coisas que estão unidas, esta união é essencial; se observar a veracidade
desta união, ela é real; se observar o modo como é produzida, é espiritual. Não
é a nossa fé que faz com que o corpo e o sangue de Cristo estejam presentes,
mas o Espírito de Cristo, que habita nEle e em nós. A nossa fé recebe e aplica às
nossas almas as graças celestiais oferecidas nos elementos da Ceia.
A outra, a união mística,
não é uma conjunção física ou local, e sim uma conjunção espiritual dos sinais
terrenos, que são o pão e o vinho, com as graças celestiais, que são o corpo e
o sangue de Cristo, no ato pelo qual são recebidos. É como se, por uma relação
mútua, eles fossem uma só e a mesma coisa. Decorre disso que, no mesmo instante
em que o participante digno come e bebe com sua boca o pão e o vinho do Senhor,
também come e bebe realmente, com a boca da sua fé, o corpo e o sangue de Cristo.[3]
Não é que Cristo seja trazido do céu para a ordenança, mas que o Espírito
Santo, pela ordenança, eleva a mente do participante legítimo a Cristo,[4]
não por mutação local, mas por afeição devota. De modo que, na santa
contemplação da fé, o crente está ali presente com Cristo, e Cristo com ele.[5]
E, por conseguinte, crendo e meditando em que o corpo de Cristo foi
crucificado, e Seu sangue foi derramado para remissão dos seus pecados e para a
reconciliação da sua alma com Deus, com isso a sua alma é alimentada mais
eficazmente, na certeza da vida eterna, do que o pão e o vinho podem nutrir o
seu corpo para esta vida temporal. É, pois, necessário que haja na ordenança,
tanto os sinais externos, para serem concretamente vistos com os olhos do
corpo, como o corpo e o sangue de Cristo, para serem discernidos com os olhos da fé. Mas a forma como o
Espírito Santo faz com que o corpo de Cristo, estando ausente de nós
localmente, esteja conosco por nossa união, o apóstolo Paulo declara que é um
grande mistério (Ef. 5:32), visto que o nosso entendimento não o pode
compreender. Portanto, o pão e o vinho memoriais não são meros sinais
significantes. Antes, com eles Cristo realmente expõe e dá a todo participante
digno, não somente a Sua divina virtude e eficácia, e sim também o Seu corpo e
o Seu sangue, tão verdadeiramente como Ele deu a Seus discípulos o Espírito
Santo, pelo sinal do Seu sopro sagrado, ou a saúde a enfermos, pela palavra da
Sua boca, ou pelo toque da Sua mão ou da Sua veste.[6] E
a apreensão feita pela fé é mais forte do que a mais extraordinária compreensão
dos sentidos ou da razão.
Para concluir este ponto, vejamos: esta santa ordenança é aquele
pão que foi abençoado e que abriu os olhos dos discípulos em Emaús, para
conhecerem Cristo (Lc. 24:30,41). É aquele
senhoril cálice pelo qual todos nós somos motivados a beber de um só Espírito
(1 Co. 12: 13). É a rocha da qual flui
o mel que revigora o espírito desfalecido de todo verdadeiro Jônatas que o
prova com a boca da fé (1 Sam. 14:27). É aquele
pão de cevada que, caindo do alto, roda pelas tendas dos midianitas e as põe
abaixo em meio a trevas infernais (Jz, 7:13).
O pão e a água angelicais sustentaram Elias durante quarenta dias em Horebe (1
Reis 19:6-8), e o maná, alimento dos anjos, alimentou os israelitas durante
quarenta anos no deserto (Sl. 78:24,25; Êx. 16:35), mas este é o
verdadeiro pão da vida, o maná celestial (João 6:32,35,49,50),
que, se o comermos devidamente, nutrirá as nossas almas para sempre e para a
vida eterna (versículos 51,58). Como então deveriam nossas almas pedir a Cristo
que atenda o nosso desejo espiritual que exprimimos com as palavras que o povo
de Cafarnaum usou para um pedido motivado por um desejo carnal, "Senhor, dá-nos sempre desse pão"?
(João 6:34).
Extraído
do maravilhoso livro A PRÁTICA DA PIEDADE,
Lewis Bayly, PES, pp. 317-321.
[1] Audio quid verba sonent, neque enim mortis tantum ac
resurrectionis suae beneficium nobis offert Christum, sed cor pus ipsum
in quo passus est ac resurrexit. Concludo, realiter, hoc est vere nobis in cama
dari Christi cor pus, ut sit animis nostris in cibum* salutarem. Calv.
in Com. in 1 Cor. 11:25. (Ouço os que as próprias palavras dizem, não tanto que
é por Sua morte e ressurreição que Cristo nos oferece benefício, mas por Seu próprio
corpo, que passou pela morte e ressuscitou. Concluo que, realmente, na Ceia nos
é dado o corpo de Cristo como alimento salutar para as nossas almas) — (* No original, eibum)
[2] Quod se nobis eommunieat, id sit arcanâ spiritus
saneti virtute, qua: res locorum distantiâ sejunetas, ae proeul* dissitas non
modo aggregare, sed co-adunare in unum potest. Calvo ibid. (O que
nos é comunicado o é pelo mistério e pela virtude do Espírito Santo, não de
algo separado pela distância espacial e afastado por divergências
inconciliáveis, mas de realidades que podem coadunar-se em uma só) –
(*Atualmente: proelium).
[3] Corpus non adest, cum pane, hama , id est, simulloco, sed homõu, id est, simul tempore. (O corpo não está visível, com o pão,
hama, isto é, no mesmo lugar, mas homou, isto é, ao mesmo tempo).
[4] Quum coena coelestis sit actio, minime
absurdum est Christum in ccelo manentem à nobis recipi. Calv. em 1
Co. 11:25. (Embora a Ceia seja ação do céu, no mínimo é sem propósito insistir
em que Cristo é recebido por nós no céu).
[5] Fidem
mitte in ccelum, et eum in terris tanquam presentem tenuiste. Aug. Ep. iii
ad Vol. (Deixa no céu a fé enquanto enfraqueces a noção da presença dele na
terra). Fidem quum dico; non intelligo quamlibet opinionem, sed fiduciam qua
quum audis panem tesseram esse corpons Christi,
non dubitas impleri à Domino, quod verba sonant: cor pus quod nequaquam cernis,
spirituale esse tibi alimentum, vinque ex Christi carne vivificam in nos per
spiritum diffundi. Calvo ibid. (Embora eu o diga da fé; não entendo quanto
eu gostaria de entender a idéia, mas a confiança em que, ao ouvires que o pão é
uma parte do corpo de Cristo, não tenhas dúvida de te saciares do Senhor, de
acordo com o que as palavras dizem: não é o corpo propriamente dito que
discernes, de maneira nenhuma, mas o alimento espiritual, e o vinho, que da
carne de Cristo se difunde em nós pelo Espírito e nos vivifica.
[6] Ego tunc nos demum participare Christi bonis agnosco
postquam Christum ipsum obtinemus. Obtinetur non tantum quum pro nobis factum
fuisse victimam credimus: sed dum in nobis habitat, dum ejus sumus membra, ex
carne ejus, dum in unam denique et vitam et substantiam (ut ita loquar) cum
ipso coalescimus. Calvo in 1 Co. 11:25. (Reconheço, pois, que, certamente, participamos
das riquezas de Cristo depois de obtermos o próprio Cristo. Obtido, não tanto
por crermos que Ele se fez vítima por nós; mas considerando que Ele habita em
nós, sendo nós Seus membros, de Sua carne; enfim em unidade de vida e
substância (como se diz), com Ele próprio nos fortalecemos).
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