Por Dr. Joel Beeke
“A
doutrina de Calvino referente à
união com Cristo, se não é o ensino mais importante que inspira
todo o seu pensamento e sua vida, é uma das características mais influentes de
sua teologia e ética", escreveu David Willis-Watkins.1
A RAIZ PROFUNDA DA
PIEDADE: A UNIÃO MÍSTICA
Calvino
não tencionava apresentar teologia como se esta fosse uma doutrina única. Seus
sermões, comentários e obras teológicas estão repletos da doutrina da união
com Cristo, a ponto de que esta se toma o foco da fé e da prática cristã.2 Calvino disse: ''A união da Cabeça com os membros, a
habitação de Cristo em nós - em resumo, a união mística - são tratadas por nós
com o mais elevado grau de importância, de modo que Cristo, tomando-se nosso,
nos faz, juntamente com Ele, participantes dos dons com os quais Ele foi
dotado". 3
Para Calvino, a
piedade está arraigada na união mística (unia mystica) do crente com Cristo; assim, essa união tem de ser nosso ponto de
partida.4 Essa união se torna possível porque Cristo assumiu nossa
natureza humana, enchendo-a com suas virtudes. A união com Cristo em sua
humanidade é histórica, ética e pessoal, mas
não essencial. Não há qualquer mistura grotesca de substâncias humanas entre
Cristo e nós. No entanto, Calvino afirma: "Cristo não somente se une a nós
por meio de um laço indivisível de comunhão, mas também cresce mais e mais em
um corpo, conosco, por meio de uma comunhão maravilhosa, até que se torna completamente
um conosco".5 Essa união é um dos grandes mistérios do evangelho.6
Por causa da fonte da perfeição de Cristo em nossa natureza, os piedosos podem
extrair, pela fé, o que necessitarem para sua santificação. A carne de Cristo é
a fonte da qual seu povo deriva sua vida e poder.7
Se
Cristo tivesse morrido e ressuscitado, mas não houvesse aplicado sua salvação
aos crentes, visando à regeneração e à santificação deles, a sua obra teria
sido ineficaz. A piedade mostra que o Espírito de Cristo está realizando em nós
aquilo que já foi realizado em Cristo. Cristo ministra sua santificação à igreja por meio de seu sacerdócio real, de
modo que a igreja possa viver piedosamente para Ele.8
O
pulso da teologia prática e da piedade de Calvino era a comunhão (communio)
com Cristo. Isso envolve participação (participatio) nos benefícios
de Cristo, que são inseparáveis da união com Ele.9 Essa ênfase já se
achava evidente na Confessio Fidei de Eucharistia (1537), assinada por
Calvino, Martin Bucer e Wolfgang Capito.1o Todavia, a comunhão com
Cristo, para Calvino, não era moldada pela sua doutrina sobre a Ceia do Senhor.
Pelo contrário, a sua ênfase na comunhão espiritual com Cristo ajudava-o a
moldar o conceito a respeito desta ordenança.
De
modo semelhante, os conceitos de communio e participatio ajudavam
Calvino a moldar o seu entendimento quanto à regeneração, à fé, à
justificação, à santificação, à segurança de salvação, à eleição e à igreja,
visto que ele não podia falar sobre qualquer doutrina à parte da comunhão com Cristo. Esse é o âmago do sistema de
teologia de Calvino.
O DUPLO VÍNCULO DA PIEDADE: O ESPÍRITO E A FÉ
A comunhão com
Cristo se realiza tão-somente por meio da fé produzida pelo Espírito. É uma
comunhão real, não porque os crentes participam da essência da natureza de
Cristo, e sim porque o Espírito de Cristo une os crentes tão intimamente a
Cristo, que eles se tornam carne de sua carne e osso de seus ossos. Do ponto de
vista de Deus, o Espírito é o vínculo entre Cristo e os crentes. De nosso ponto
de vista, a fé é o vínculo. Esses pontos de vista não se chocam, uma vez que
uma das principais realizações do Espírito é produzir a fé em um pecador. 11
Somente o Espírito
pode unir Cristo, no céu, com o crente, na terra. Assim como na encarnação, o
Espírito uniu o céu e a terra, assim também na regeneração o Espírito faz o
eleito elevar-se da terra à comunhão com Cristo no céu, trazendo-O ao coração e
à vida dos eleitos na terra.12 A comunhão com Cristo é sempre o
resultado da obra do Espírito - uma obra maravilhosa e experiencial, mas
incompreensível.13 O Espírito Santo é o vínculo que une o crente a
Cristo, bem como o instrumento por meio do qual Cristo é comunicado ao crente.14
Conforme Calvino disse a Pietro Martire: "Crescemos juntamente com Cristo
em um corpo. Ele compartilha conosco o seu Espírito; e, por meio das operações
invisíveis do Espírito, Cristo se torna nosso. Os crentes recebem essa
comunhão com Cristo ao mesmo tempo em que recebem o seu chamado, No entanto,
dia a dia, eles crescem mais e mais nesta comunhão, à proporção que Cristo
cresce no íntimo deles",15
Calvino vai além de
Lutero nesta ênfase sobre a comunhão com Cristo. Pois, ele enfatiza que, pelo
Espírito, Cristo dá poder àqueles que estão unidos com Ele pela fé. Sendo
"enxertados na morte de Cristo, derivamos dessa morte uma energia secreta,
assim como o ramo extrai energia da raiz", escreveu Calvino. O crente
"é energizado pelo poder íntimo de Cristo, de modo que podemos afirmar
que Cristo vive e cresce nele, pois, assim como a alma dá vida ao corpo, assim
também Cristo transmite vida aos seus membros".16
À semelhança de Lutero,
Calvino acreditava que o conhecimento é fundamental à fé. Esse conhecimento
inclui a Palavra de Deus, bem como a proclamação do evangelho17 Uma vez que a
Palavra escrita é exemplificada na Palavra viva, Jesus Cristo, em quem se
cumprem todas as promessas de Deus, a fé não pode ser separada de Cristo.18
A obra do Espírito não suplementa nem substitui a revelação das Escrituras, e
sim a confirma. "Retire a Palavra, e não permanecerá fé alguma",
disse Calvino.19
A
fé une o crente a Cristo por meio da Palavra, capacitando-o a receber Cristo,
revelado no evangelho e oferecido graciosamente pelo Pai.20 Pela fé,
Deus também habita no crente. Conseqüentemente, Calvino disse: "Não
devemos separar Cristo de nós mesmos ou nós mesmos de Cristo", e sim
participarmos dEle pela fé, pois isso "nos desperta da morte e nos torna
uma nova criatura"²¹
Pela
fé, o crente possui a Cristo e cresce nEle. Além disso, o grau de sua fé,
exercido mediante a Palavra, determina seu grau de comunhão com Cristo.22
"Tudo o que a fé deve contemplar é-nos revelado em Cristo", Calvino
escreveu.23 Embora Cristo permaneça no céu, o crente que se
distingue em piedade aprende, pela fé, a reter a Cristo tão firmemente, que Ele
habita no íntimo desse crente.24 Pela fé, os piedosos vivem por aquilo que
acham em Cristo, e não pelo que acham em si mesmos.25
Para Calvino, a
comunhão com Cristo flui da união com Cristo.
Olhar
para Cristo, a fim de obter segurança, significa ver a nós mesmos em Cristo.
Como escreveu David Willis-Watkins: "A segurança de salvação é um
conhecimento derivado, cujo foco permanece em Cristo unido ao seu corpo, a
igreja, da qual somos membros".26
A DUPLA PURIFICAÇÃO DA PIEDADE: JUSTIFICAÇÃO E SANTIFICAÇÃO
De
acordo com Calvino, os crentes recebem de Cristo, pela fé, a "graça
dupla" da justificação e da santificação, que juntas proporcionam uma
purificação dupla.27 A justificação oferece pureza imputada, e a
santificação, pureza atual.28
Calvino define a
justificação como "a aceitação com a qual Deus nos recebe ao seu favor
como homens justoS".29 Ele prossegue, afirmando: "Visto que Deus nos
justifica por meio da intercessão de Cristo, Ele nos absolve pela imputação da
justiça de Cristo, de modo que, não sendo justos em nós mesmos, somos reputados
como justos em Cristo".30 A justificação inclui a remissão dos pecados e
o direto à vida eterna.
Calvino considerava
a justificação como uma doutrina central da fé cristã. Ele a chamou de "a
coluna principal que sustenta o cristianismo", o solo do qual se
desenvolve a vida cristã e a substância da piedade.31 A justificação não
somente honra a Deus, por satisfazer as condições para a salvação, mas também
oferece à consciência
do crente "descanso pacífico e tranqüilidade serena".32 Conforme diz
Romanos 5.1: "Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por
meio de nosso Senhor Jesus Cristo". Isto é o âmago e a vida da piedade.
Visto que os crentes são justificados pela fé, eles não precisam se preocupar
com sua posição diante de Deus. Podem renunciar voluntariamente a glória
pessoal e aceitar, dia a dia, a sua vida como um dom procedente das mãos do
Criador e Redentor. Algumas batalhas diárias podem ser perdidas para o inimigo,
mas Jesus Cristo venceu a guerra para os crentes.
A santificação se
refere ao processo pelo qual o crente é conformado, cada vez mais, a Cristo,
em seu coração, comportamento e devoção a Deus. A santificação é um refazer
contínuo do crente, por meio do Espírito Santo; é a permanente consagração do
corpo e da alma a Deus.33 Na santificação, o crente oferece-se a si
mesmo como sacrifício a Deus. Isso não ocorre sem grandes lutas e progresso lento.
Exige a limpeza da corrupção da carne e a renúncia do mundo.34 Exige
arrependimento, mortificação e conversão diária.
A justificação e a
santificação são inseparáveis, disse Calvino. Separar uma da outra é o mesmo
que despedaçar a Cristo35 ou tentar separar a luz solar do calor
que ela produz.36 Os crentes são justificados para adorar a Deus em santidade
de vida.37
Extraído do livro Vencendo o
Mundo, Dr. Joel Beeke, Editora Fiel, pgs 45-52
_______________
NOTAS
1.THE UNIO Mystica and the Assurance of Faith. In:
SPIJKER, Willem van't (Ed.) Calvin: erbe und auftrag: festschrift für
Wilhelm HeinrichNeuserzum 65, Geburtstag. Kampen: Kok, 1991. p. 78.
2.Ver, por exemplo:
- PARTEE, Charles. Calvin's Central Dogma
Again. Sixteen century journal. 18.2 (1987): 184.
- GRÜNDLER, OUo. John Calvin: Ingrafting
in Christ. In: ELDER, Rozanne (Ed.). The spirituality of western
Christendom. Kalamazoo, Mich.: Cistercian, 1976. p.172-187.
- ARMSTRONG, Brian G. The Nature and
Structure of Calvin's Thought according to the Institutes: Another Look. In: John
Calvin's magnum opus. Potchefstroom, South Africa: Institute for
Reformation Studies, 1986. p. 55-82.
- HAAS, Guenther. The concept of equity in Calvin's
ethics. Waterloo, Ont.: Wílfrid Laurier University Press, 1997.
3.Institutes. 3.11.9. Ver também C0.
15:722.
4.HAGEMAN, Howard G. Reformed Spirituality.
In: SENN, Frank C. (Ed.). Protestant spiritual
traditions. New York: Paulist Press, 1986. p. 61.
5.Institutes. 3.2.24.
6.Dennis
Tamburello ressalta que há "pelo menos sete ocasiões em que, nas
Institutas, Calvino usa a palavra arcanus ou incomprehensibilis para
descrever a união com Cristo" (2.12.7; 3.11.5;4.17.1,9,31,33;4.19.35). UnionwithChrist:JohnCalvin and the
Mysticism of St. Bernard. Lousville: Westminsterl John Knox Press, 1984. p. 89,
144.
Ver também EVANS, William B. Imputation
and impartations: the problem of union with Christ in nineteenth-century
american reformed theology.1996. f. 6-68. Dissertação
(Ph. D). VanderbUt University, 1996.
7.Commentary, João 6.51.
8.Institutes. 2.16.16.
9. SPIJKER, Willem van't. "Extra nos" e "in
nos" por Calvino em A Pneumatological Light. In: DEKLERK, Peter (Ed.). Calvin and the Holy
Spirit. Grand Rapids: Calvin Studies Society, 1989. p. 39-62. - JOHNSON,
Merwyn S. Calvin's Ethical Legacy. In: FOXGROVER,
David (Ed.). The legacy of John Calvin. Grand
Rapids: Calvin Studies Society, 2000. p. 63-83
10.
OS.
1:435-436; SPIJKER, Willem van't. Extra
nos and in nos by Calvin in a Pneumatological Light. p. 44.
11.
Institutes. 3.1.4.
12. Institutes. 4.17.6. Commentary, Atos
15.9.
13. Commentary, Efésios 5.32.
14. Institutes. 3.1.1; 4.17.12.
15.
Calvinus Vermilio (# 2266,
8 agosto 1555). CO. 15:723-724.
16.
CO. 50:199. Ver também PITKIN, Barbara. What pure eyes could not see: Calvin's doctrine of faith in its
exegetical contexto New York: Oxford University Press, 1999.
17.
Institutes. 2.9.2. Commentary, 1 Pedro 1.25. Ver também FOXGROVER,
David. John Calvin's Understanding of Conscience.
1978.407 f. Dissertação (Ph. D). Claremont, 1978.
18. THE COMMENTARIES of John Calvin on lhe Old
Testament. 30 v. Edinburgh: Calvin Translation Society, 1843-1848. Comentário sobe Gênesis 15.6. Daqui para frente, a nota dirá
apenas Commentary e citará o texto bíblico. Ver também Commentary, Lucas
2.21.
19.
Institutes. 3.2.6.
20.
Institutes. 3.2.30-32.
21. Institutes. 3.2.24. Commentary, 1
João 2.12.
22. Sermons on the Epistle to the Ephesians. Arthur Golding (Trad).
Reimpressão. Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1973. 1.1718. Daqui para frente, a nota dirá apenas Sermon e
citará o texto de Efésios.
23. Commentary, Efésios 3.12.
24. Sermon, Efésios 3.14-19.
25. Commentary, Habacuque 2.4.
26.
The
Third Part of Christian Freedom Misplaced. In: GRAHAM, W. Fred (Ed.). Later
calvinism: international perspectives. Kirksville, Mo.: Sixteen Century
Journal, 1994. p. 484-485.
27.
Institutes. 3.11.1.
28. Sermons on Galatians. Kathy Childress (Trad.). Edimburg:
Banner ofTruth Trust, 1997.2.17-18. Daqui para frente, a nota dirá
Sermon e citará o texto de Gálatas.
29.
Institutes. 3.11.2.
30.
Ibid.
31. Institutes. 3.11.1; 3.15.7.
32.
Institutes. 3.13.1.
33.
Institutes. 1.7.5.
34. Commentary, João 17.17-19.
35.
Institutes. 3.11.6.
36. Sermon, Gálatas 2.17-18.
37. Commentary, Romanos 6.2.
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