É freqüentemente suposto que as reformas litúrgicas de Lutero e Calvino são concordes somente na condenação dos abusos existentes no período final da Igreja Medieval. É também admitido que as diferença nas respectivas concepções de Culto e no cerne essencial das suas ordens litúrgicas, refletem os contrastes no temperamento dos dois reformadores. Isto, esperamos demonstrar, é um grave equívoco no entendimento tanto de Lutero como de Calvino, em dois aspectos. Uma tentativa será feita para demonstrar que os pilares gêmeos da Reforma concordavam não apenas no que se constituía os abusos do período final da igreja medieval, mas também no desejo de retornar para a primitiva simplicidade do culto cristão. Esperamos demonstrar, inicialmente, que a concordância deles sobre os abusos que deviam ser corrigidos, além de ser a expressão de suas preferências subjetivas, foi devido às doutrinas e teologia que eles mantinham em comum. Emsegundo lugar, será demonstrado que é uma simplificação espúria da questão, declarar que os desacordos entre Lutero e Calvino são explicados como resultado, respectivamente, do conservadorismo de Lutero e da natureza rigidamente lógica de Calvino. Mesmo que esta afirmação seja alterada e venha a produzir a impressão de que Calvino foi inteiramente verdadeiro aos seus princípios, enquanto Lutero foi conservador, isto ainda permanece uma concepção injusta a respeito de Lutero. Seu aparente conservadorismo pode ser explicado por princípios teológicos.
Os Reformadores eram concordes com respeito aos abusos da igreja medieval, que deviam ser corrigidos. Em particular, eles investiram contra quatro falsas concepções.
(1) Sua comum “aversão peculiar” foi o antigo e medieval ensino a respeito da Missa. Eles concordavam em condenar o ensino que proclama ser na Missa, mais uma vez, oferecido o sacrifício que de uma vez por todas foi feito no Calvário. Não parecia nada menos que blasfemo para eles que homens usassem asseverar que o sacrifício feito na Cruz exigia repetição.
(2) Eles estavam igualmente seguros, em segundo lugar, que a Missa como era celebrada na época não era uma comunhão. O povo não comungava de ambos os elementos; eles eram apenas espectadores de um drama no qual o sacerdote era o ator principal e o coro cantava uma música incidental e complicada. Isso não era tudo; o serviço da Missa não era ao menos inteligível para a maior parte do povo, porque onde era audível, ou era falada ou cantada em uma língua acadêmica [Latim*]. Os Reformadores também objetaram o caráter propiciatório da missa, quando elas eram oferecidas para aplacar a Deus pelas ofensas de alguém ou obter favores especiais de Deus, como por exemplo, antes de sair para uma jornada de trabalho. De fato os Reformadores contendiam que a Missa medieval fora considerada um officium ao invés de um beneficium.[1]
Aliada à desaprovação da Missa por eles estavam suas objeções pelas concepções correntes concernentes ao sacerdócio. Pois se o sacerdote deveria ser considerado como um instrumento indispensável para obter o bom favor de Deus, ele se tornava, não um veículo de graça, mas um impedimento, um obstáculo para a comunhão entre Deus e o homem. Além do mais, os sacerdotes eram, como insistia Lutero com desprezo, tirânicos, insaciáveis, mundanos e mercenários.[2]
(3) A terceira concepção que ambos os Reformadores condenavam era a falsa visão da autoridade dos santos, os quais eram considerados como poderosos mediadores entre Deus e os homens, que poderiam ser influenciados por um indivíduo a remir suas penas e suplícios do purgatório, o que constituía um panteão.
Não é surpresa que, tanto Lutero como Calvino, enfatizassem a primazia da pregação da Palavra de Deus, tanto para acabar com os abusos que estavam incrustados no sacramento da Santa Ceia, como para declarar o que era a verdadeira vontade de Deus nesta matéria.
Os Reformadores não apenas concordavam em suas negações, mas eles eram uma só mente em muitas afirmações positivas. Ambos desejavam restaurar o puro culto da Igreja primitiva. Em sua Formula Missae Lutero declara que não era sua intenção “omnem cultum dei prorsus oblere” (não era obsoleto todo o culto que era prestado a Deus), mas apenas “eum qui in usu est, pessimis additamentis viciatum, repurgare et usum pium monstrare” (alguns usos que estão em prática, péssimas adições viciosas, que pelo uso pio ficam aparentes e repugnam).[3] Ele, portanto não atirava ao mar toda a tradição da igreja não dividida, desde que concordava que “primorum patrum additiones...laudabiles fuere, quales Athanasius et Cyprianus fuiesse putantur” (as primeiras adições dos Pais da Igreja...foram saudáveis, as quais Atanásio e Cipriano foram seus artífices).[4] De fato sua visão era retornar ao não corrompido Serviço da Comunhão da igreja primitiva. A intenção de Calvino era similar. Isto ficou claramente explícito no título completo do Livro de Culto de Genebra de 1542. Este título dispõe: “La forme dês prieres et chantz eclesiastiques auec la maniere d´administrer lês sacrements, et consacrer lê mariage; selon la coutume de L´eglise ancienne” (A forma das orações e cânticos eclesiásticos e ainda a maneira de administrar os sacramentos e celebrar o casamento; segundo o costume da Igreja Antiga).[5] Era portanto, um declarado anseio de ambos os reformadores de restaurar o Culto da Igreja antiga. A base comum de concordância tanto nos abusos do culto contemporâneo quanto na positiva concepção de restauração do culto da Igreja primitiva, longe de ser apenas coincidência, era baseado em pressuposições teológicas similares. As doutrinas básicas mantidas em comum pelos reformadores foram três: A Bíblia como a Revelação de Deus, a Justificação por meio da Fé, e Cristo como único mediador entre Deus e os homens. As últimas duas doutrinas, obviamente, foram derivadas da primeira doutrina toda inclusiva das Escrituras. Uma vez que a Bíblia foi resgatada em toda a sua autoridade, então se seguiu que qualquer tradição que conflitasse com a Palavra de Deus, embora com a sanção da Igreja, tinha que ser abolida. Ademais, a primazia das Escrituras determinou um desejo pelo retorno aos princípios e práticas da comunidade primitiva dos cristãos como vista nos Atos dos Apóstolos. Estas duas conclusões passaram de mão em mão. Isso porque os erros da Igreja da época foram vistos como desvios, tanto da Bíblia, como também da Igreja primitiva. Além disso, existiam dois princípios dominantes na Bíblia que a prática da época desconsiderava. Se os homens eram justificados por meio da fé na justiça de Cristo, aceitando seu sacrifício como garantia toda suficiente para o perdão de seus pecados, então todas as práticas motivadas por uma crença na justificação pelas obras deveriam desaparecer. Tais práticas incluíam participar da Missa como uma boa obra como também fazer peregrinação religiosa. Ainda, a noção de que os santos tinham um tesouro de méritos o qual está disponível como um crédito para compensar os débitos do pecador, também tinha que ser abolida. A mesma concepção da eficácia da intercessão dos santos e da mediação necessária do sacerdote, anulava a doutrina bíblica de Cristo como único mediador. Se santos e sacerdotes eram indispensáveis, seria inverídico dizer ser Cristo “o único nome dado entre os homens pelo qual importa que sejamos salvos”. Portanto através destas três doutrinas integradas no pensamento de ambos os reformadores, Lutero e Calvino, se fez necessária uma reforma litúrgica.
Os resultados das reformas litúrgicas luteranas e calvinistas foram reconhecidamente diferentes. Como essas diferenças deveriam ser levadas em consideração? É insuficiente explicar estas diferenças assumindo que Lutero era um conservador e cauteloso reformador enquanto que Calvino era lógico e radical. A diferença real entre a reforma luterana e calvinista no culto pode ser disposta como a seguir: Lutero ficaria com o que não era especificamente condenado nas Escrituras enquanto Calvino ficaria apenas com o que é ordenado por Deus nas Escrituras. Este era o seu fundamental desacordo. Isto é de vital importância na historia do culto Puritano, visto que os Puritanos aceitavam o critério Calvinista, enquanto que seus oponentes, os Anglicanos, aceitavam o critério Luterano.
A visão de Lutero, que será demonstrada, foi na maior parte direcionada por suas considerações teológicas, mas deve ser levado em alguma conta seu temperamento e suas exigências práticas que teve de encarar e que devem ser apreciadas as notórias razões do seu tão conhecido conservadorismo. Ele deixou isto perfeitamente claro quando não desejava introduzir uma “nova lex” em matéria litúrgica. Ele era completamente avesso a instalação de um cristianismo Levítico. Isto, dizia ele, era contrário a liberdade do Cristão.[6] Além disso, Lutero sustentava que a Palavra de Deus, se fielmente pregada, iria por ela mesma criar novas e adequadas formas de culto cristão. Não era prerrogativa sua produzir uma liturgia obrigatória que acorrentasse as consciências dos homens cristãos. Mesmo promulgando a Formula Missae ele negou o desejo de coagir os cristãos a aceitá-la.[7] Foi meramente apresentada como uma alternativa sugerida à Missa da Igreja Romana, não como uma declaração autoritativa a qual se deva submeter. A variedade de ritos e cerimônias praticadas nos dias atuais pelas igrejas luteranas do continente é um legado da doutrina de Lutero da liberdade cristã. Deve ainda ser lembrado que ele favoreceu a fluidez cúltica tendo por base uma liturgia uniforme e pela sua própria uniformidade poderia cegar os homens em relação ao caráter interno do culto.[8] Tudo o que ele requeria era que os ritos da Igreja não conflitassem com a orientação da Sagrada Escritura. Aliada a esta preocupação pela liberdade cristã, estava sua defesa do princípio da “festina lente”. Isto estava baseado na orientação de Paulo em considerar o irmão mais fraco. Para que eles não fossem desnorteados por nenhum iconoclasticismo, ele propunha abolir apenas o que era contrario ao ensinamento claro das Escrituras. Para o resto, ele iria provar de todas as coisas e reter o quer era bom.
Esta tendência em considerar a tradição da igreja como valiosa, quando e onde ela não contradizia a Escritura, foi confirmada por Lutero em sua doutrina das Ordens. As implicações desta doutrina foram que Deus ordenou ao mundo que o homem não deveria viver como um indivíduo isolado da sociedade, mas como um ser compartilhando certas relações comunitárias. Tais comunidades ordenadas por Deus são a Igreja e o Estado. Desde que elas dependem para a sua continuidade da divina sanção, os homens devem respeitá-las. Portanto, excetuando-se o que elas definidamente contradizem a vontade revelada de Deus, elas devem ser obedecidas. Tal doutrina coloca um grande prêmio sobre a tradição e deve ser tida como a base religiosa do conservadorismo de Lutero. Também ajuda a explicar o porquê dos bispos terem uma parte importante em decidir quais particulares reformas litúrgicas são desejáveis. Teoricamente Lutero deixou a escolha de aceitar ou rejeitar suas reformas litúrgicas para os cristãos das igrejas locais, mas na prática a decisão foi deixada para a escolha do bispo.
Um ponto a ser tratado ainda, é a atitude de Lutero para com o cerimonial. Em contraste com o despido Culto Calvinista, a liturgia luterana é rica no uso de ações simbólicas e vestimentas. Nesta matéria, nós temos a clara afirmação de Lutero que Deus deu ao homem cinco sentidos com os quais ele o poderia adorar e seria uma franca ingratidão não usá-los.[9] Sem dúvida ele teria considerado a forma de liturgia de Calvino como um exemplo de cultuar a Deus com apenas dois dos sentidos: ouvir e falar [ou cantar]. Ao contrário da liturgia Luterana que apela para o sentido do olfato nos incensos e para a visão pelo uso de vestimentas e cerimônias. Para esse criticismo Calvino teria legitimamente respondido que o culto é primariamente para a glória de Deus, e secundariamente para a edificação dos homens e não para o prazer deles. Alguém poderia questionar se Lutero ficaria satisfeito com essa resposta, desde que com o senso que tinha da grandiosa condescendência de Deus em Cristo, ele mantinha que Deus tinha dado ao homem auxílios as suas devoções. Tais auxílios eram rituais e cerimoniais. Assim como Cristo, pela sua encarnação, santificou a humanidade, então as coisas terrenas poderiam ser sacramentadas pelo divino. Lutero não estava preparado a dispensar o “o porta olho” para a alma, como Bunyan iria mais tarde denominar. Como nós iremos ver mais tarde, essa visão era inaceitável para Calvino, desde que ele mantinha que o homem era essencialmente corrupto e que seu culto só era aceitável na medida que ele se conformava com a lei de Deus nas Escrituras. Calvino mantinha que o Decálogo discorrendo contra “as imagens de escultura”, tinha dispensando suficientemente a necessidade de cerimônias e vestimentas.
A postura de Lutero, como veremos, era capaz de ser defendida em termos teológicos. Mas sua atitude não era estritamente teológica, nem era sempre baseada em princípios. Algumas vezes ele era inconsistente com seus princípios. Lutero nem sempre levava suas convicções teológicas às suas conclusões lógicas. Por exemplo, seu apelo ao braço do estado para punir os camponeses que se revoltaram contra seus senhores era contrário à sua doutrina da liberdade cristã. Similarmente, em matéria litúrgica, pode ser exposto de forma justa que sua doutrina da Palavra de Deus não foi logicamente desenvolvida. Como atenuante deve ser lembrado, no entanto, que ele foi o primeiro reformador e que no tempo de Calvino a situação era mais estável e os homens tinham mais tempo de refletir nestes assuntos. Não obstante, não pode ser negado que nos últimos anos de Lutero, o reformador mostrou um crescente conservadorismo. Ele desejava mais uniformidade tanto no uso das vestimentas eclesiásticas como nas formas de liturgia. O que previamente era opcional se tornou obrigatório.
Finalmente, não pode se ter dúvida que a opinião de Lutero foi, em certa extensão, moldada não em cima de um princípio, mas pelos acontecimentos. O método era “solvitur ambulando”. Isto era definitivamente o caso na ordem pela qual suas reformas eram executadas. Sua pregação da Justificação pela fé exigiu-lhe reformar o Cânon da Missa. Isto por sua vez levou os sacerdotes a serem separados para cada localidade e também para o costume onde cada sacerdote era permitido realizar uma missa a cada dia. Isso levou mais clérigos para fora da vida cotidiana e assim significava menos dinheiro nos cofres da Igreja. O ataque à vida monástica fez com que muitos monges e freiras ficassem desempregados e solitários. O completo colapso das finanças levou Lutero a buscar ajuda do Príncipe. Um outro efeito das reformas de Lutero era que a Igreja Romana recusava ordenar candidatos que eram luteranos ou que não tomassem os votos do celibato. Todas estas circunstâncias forçaram Lutero a fazer sua própria provisão para ordenar e treinar futuros ministros da Palavra. Numa extensão considerável, portanto, Lutero foi guiado não por seus princípios mas pelos fatos. Ao mesmo tempo é também verdadeiro que foi a fiel proclamação destes princípios teológicos que levou a estes acontecimentos. A atitude de Lutero com a reforma litúrgica foi, pois, majoritariamente fundamentada em bases teológicas, mas também foi parcialmente determinada pelas considerações de conveniências.
As doutrinas que são logicamente aplicadas por Calvino não são distintivamente suas. Ele e Lutero estavam unidos concordemente na maioria delas, mas foi Calvino que deu a elas sua ênfase distintiva e aplicou logicamente a teoria e a prática do culto. Para ambos Lutero e Calvino a Bíblia era a Palavra de Deus. Mas suas concepções da autoridade da Palavra de Deus eram diferentes. Lutero descrevia a Bíblia como “trostbuch” (livro consolador), o berço de Cristo; Calvino, porém a definia como “la sainte loy et parole evangelique de Dieu” (a santa lei e promessa evangélica de Deus).[10] Lutero aceitava a orientação bíblica em matérias doutrinárias, mas recusava em considerá-la um diretório de culto. Lutero iria admitir em sua adoração qualquer elemento litúrgico que não fosse inconsistente com o ensinamento da Bíblia. Calvino só iria aceitar o que a Bíblia especificamente autoriza. Se a Bíblia era a vontade revelada de Deus, afirmava Calvino, então somente as ordenanças bíblicas seriam aceitáveis a Deus. Adições humanas deveriam, por conseguinte, ser de todo ab-rogadas, porque Deus fez conhecer sua vontade nas Escrituras.
A raiz da objeção de Calvino às adições humanas no culto legítimo de Deus tinha outra base. O homem era essencialmente corrupto; ele carregava a “damnosa haereditas” (herança danosa) do pecado original e portanto ele não poderia cultuar a Deus da forma certa ainda que pudesse assim o desejar.[11] Ele é inteiramente pecaminoso e assim suas próprias idéias do que constituiria o correto culto seriam viciadas pela sua depravação. Estando nesta confusão, ele ainda não poderia afastar de seu coração o fato que Deus tinha declarado o que é o verdadeiro culto em Sua Palavra. O homem, portanto, deveria aprender ali como glorificar a Deus da forma certa. Visto que só podemos orar da maneira certa a Deus apenas quando o Espírito Santo por nós intercede, devemos nos submeter a orientação do Espírito. Estas três doutrinas: da Palavra de Deus, do pecado original (da queda), e da intercessão do Espírito Santo, são logicamente aplicadas no culto calvinista. Conseqüentemente o caráter bíblico e os precedentes bíblicos para a liturgia também, ou seja, a centralidade da Palavra está invisivelmente na pregação e visivelmente nos sacramentos. Isto também explica a abertura invocatória pelo auxílio de Deus na liturgia de Genebra, enfatizando a total falta de amparo do homem à parte de Deus. Conseqüentemente, também, a confissão de pecados e a invocação da ajuda do Espírito Santo antes de ler as Escrituras para que Elas possam ser corretamente entendidas.[12] Todas estas três doutrinas tão cuidadosamente levadas a cabo na forma genebrina podem ser compreendidas sob a total submissão da Doutrina Calvinista à dependência de Deus.
A doutrina que Calvino fincou, cada vez mais distintivamente sua, foi a da Eleição. Pode ser dito que ele redescobriu o sentido da Igreja como o Novo Israel, o povo de Deus. Esta doutrina sem sombra de dúvida é refletida em sua teoria do culto. Ela produziu um profundo senso de honra e reverência perante Deus, que era enfatizado na liturgia pela leitura do Decálogo e pela confissão de fé que era feita pelos cristãos como uma unidade em Cristo. Não era menos sentida na profunda e espontânea gratidão que extravasava através do cântico dos salmos pela congregação. E foi esta doutrina, como também a da Comunhão como “sigillum Verbi”, que fazia Calvino enfatizar a unidade dos elementos do culto antes da Comunhão. A Comunhão é, portanto não um mero apêndice ao ato da pregação, é o ato, para os fiéis, no qual Deus sela suas promessas aos Eleitos. A doutrina da Eleição com sua reflexão na natureza corporativa do culto calvinista contrasta com o individualismo que caracteriza a liturgia Luterana.
Deixar esta matéria desta forma seria uma injustiça para a memória de Lutero. Deve ser reconhecido que Calvino teve que acomodar suas visões em três assuntos. Ele fez uma distinção entre os fundamentais e os não importantes pontos na forma do culto. Ele não vacilava por um momento de sua convicção de que todo o culto deve proceder da divina inspiração, e as tradições humanas não carregavam nenhum peso na adoração. Por outro lado, ele mantinha que, em matéria de culto, existiam tanto doutrinas fundamentais como também auxílios superficiais que conduziam à paz e concórdia e que deveriam ser deixados para o julgamento dos Cristãos como indivíduos. Ele fez apenas três concessões, cada uma delas em matéria de forma, não de doutrina.[13] 1) Ele desistiu de sua fórmula de absolvição quando o populacho de Genebra a depreciou como novidade. 2) Ele também permitiu que a Santa Ceia fosse celebrada com pão não fermentado. Ele não desaprovou o uso de pão não fermentado no Sacramento, mas ele não gostou do método pelo qual esta mudança foi introduzida em Genebra, ou seja, ele desaprovou o modo arbitrário pelo qual o vizinho Cantão de Berna exigiu que Genebra adotasse esta prática. 3) Sua terceira e maior concessão, foi a de se render ao requerimento dos magistrados de Genebra em permitir a Ceia do Senhor ser celebrada apenas quatro vezes por ano. Este ponto não foi facilmente concedido e Calvino deixou registrado para a posteridade que sua convicção nesta matéria foi imposta pelos magistrados genebrinos.[14] Estas três concessões não podem ser comparadas em seriedade ou amplitude com as concessões feitas por Lutero. Sendo assim, Calvino não pode ser acusado de inconsistência ou conservadorismo na matéria de acomodação, porque ele sabia tanto a lógica de sua posição quanto que deveria ceder porque era minoria e porque os pontos em questão eram apenas de menor importância.
É na comparação da doutrina dos sacramentos de Calvino (e particularmente da Ceia do Senhor) com a de Lutero, que a anterior base teológica consistente aparece de forma clara. Não é apenas asseverar que Calvino era meramente lógico no seu tratamento dos Sacramentos, visto que ele reconheceu que existe um mistério impenetrável nos atos graciosos de Deus para com o homem, os quais a razão pode raramente provar. Assim, ele era um adorador de mente acurada. No entanto, sua doutrina dos Sacramentos era mais consistente teologicamente que a de Lutero. Como Barclay demonstra,[15] os dois Reformadores eram concordes em quatro principais aplicações. (1) Ambos condenavam qualquer doutrina que negava a necessidade de fé viva no receptor ou que ensinava que os sacramentos conferiam graça ex opere operato. (2)Ambos repudiavam a doutrina que mantinha que os Sacramentos deveriam ser entendidos num sentido meramente etimológico como distintivos ou testemunhos da confissão cristã. (3) Em terceiro lugar, eles rejeitavam como inadequada a visão que os sacramentos representavam meras alegorias ou significativas exibições da verdade. (4) Finalmente, ambos se opuseram a doutrina que expressava que a Ceia do Senhor era apenas um rito comemorativo. Para ambos os sacramentos eram, positivamente, “sigilla verbi”, ou seja, eles eram sinais pelos quais Deus confirmava ou selava suas promessas ao seu povo. A diferença radical entre a posterior visão luterana e a doutrina Calvinista consistia no fato que Lutero mantinha que os Sacramentos tinham eficácia inerente, enquanto Calvino se refere ao seu poder santificador pelo acompanhamento do auxílio de Deus.[16] Lutero pensava que a objetividade dos sacramentos apenas poderia ser mantida se a eficácia inerente fosse postulada. Asseverar a fé como uma pré-condição para a sua eficácia parecia para ele fazer os sacramentos dependerem da fé do receptor. Calvino estava bem ciente desta imputação, mas sua doutrina da Ceia do Senhor não pode ser acusada de subjetividade, desde que ele declara que a própria fé é um dom de Deus mediado pelo Espírito Santo. Lutero também achou dificuldade em manter uma crença numa união mística de Cristo com o crente na Santa Ceia, se alguém mantinha que o corpo ressurreto do Senhor era limitado (limitado ao céu em corpo humano – N. E.)
Para eliminar esta dificuldade, Lutero mantinha a doutrina da ubiquidade do corpo de Cristo. Calvino, por outro lado, não recorreu a uma dúbia teoria metafísica para substanciar conclusões chegadas de equivocados fundamentos teológicos. Ele argumentou que o corpo ressurreto de Cristo estava no céu, mas isto não o impedia de que ele pudesse operar pelo poder do Seu Espírito Santo.
“Cristo, com todas as suas riquezas está lá presente a nós não menos do que estivesse perante nossos olhos ou tocado por nossas mãos”.[17]
Então, pode ser visto que a posterior doutrina de Lutero da eficácia inerente dos Sacramentos se distancia de sua doutrina inicial dos sacramentos como “sigilla Verbi”, presente e respondida por meio da fé. Do outro lado, Calvino é consistente teologicamente sem conceder nada da objetividade da posterior visão de Lutero. Ao mesmo tempo seu ensinamento, igualmente com o de Lutero, preserva o sentido da grata adoração como a condescendência de Deus quanto também a um profundo senso de mistério.
(1) Esta primeira grande diferença entre o culto Luterano e o Calvinista, considerada como um todo, é que o primeiro é mais subjetivo e o ultimo é mais objetivo. Para Lutero a Bíblia é a Palavra de Deus na qual ele encontra a corroboração de sua experiência espiritual. Para Calvino a Bíblia é a declaração da vontade de Deus e tem autoridade em toda sua totalidade. O culto luterano tende a se tornar a expressão da experiência que a Palavra gera. Sua atmosfera é de alguém grato pelo perdão misericordioso de Deus. No culto Calvinista mais proeminência é dada para a Bíblia como a declaração da vontade de Deus para a doutrina, conduta e governo da Igreja. A atmosfera característica é a de reverente temor perante a Soberana Vontade. O sermão no culto calvinista é um elemento objetivo de culto, porque é o proclamar e expor a vontade de Deus declarada em todas as partes dos Escritos Sagrados. Além disso, enquanto o culto luterano apela para o individual e expressa sua confissão na primeira pessoa do singular, o culto calvinista é corporativo e congregacional. Deus é concebido como declarando sua vontade aos Eleitos e as orações feitas são a resposta corporativa à Sua Palavra, como o são os louvores nos salmos metrificados.
(2) A segunda diferença é que o culto calvinista é mais bíblico em natureza que o luterano. Onde no culto luterano se continha hinos que são paráfrases da experiência cristã e ensinamentos cristãos, para Calvino os louvores eram inteiramente escriturísticos. Ele apenas permitiria os Salmos. Enquanto Lutero não se opunha ao uso de seqüências de prosas, provadas antes que sua doutrina fosse correta, Calvino insistia na leitura da Palavra de Deus sem embelezamentos. Outra vez, enquanto as orações luteranas poderiam proclamar a experiência cristã, como o arrependimento ou a adoração, nas formas originais de Calvino a liturgia apenas continha uma oração de confissão que era exclusivamente escriturística. Também Calvino incluiu o Decálogo como uma parte integral da liturgia de Estrasburgo.
(3) Uma terceira diferença entre os ritos luteranos e calvinistas é que mais se destaca. Enquanto o culto luterano é composto de dois elementos, o movimento descendente de Deus em direção ao homem e o movimento ascendente do homem até Deus (estes sendo aproximadamente iguais em proporção), o culto calvinista é majoritariamente um movimento descendente. Se o pensamento em primeiro lugar na mente de Lutero era a gratidão, o pensamento dominante para Calvino é que no culto o homem obedecia à Bíblia, pois à parte desta obediência ele não poderia oferecer uma aceitável adoração a Deus. A idéia fundamental do culto luterano era gratidão; a de Calvino era obediência. Ainda que existam elementos, tanto nas orações como nos louvores do culto calvinista que representem este movimento ascendente, o senso que prevalece é uma reverente humilhação perante o Deus vivo. Isto é exemplificado pela falta de uma específica oração de adoração no serviço calvinista. Se os adoradores luteranos eram “laeti triumphantes”, os calvinistas eram “miseri et abiecti”. Esta distinção não é absoluta, mas aponta para uma real diferença de ênfase.
(4) Em quarto lugar, o culto luterano é mais rico no uso de cerimônias que o serviço calvinista. Anteriormente já foi mostrado que eram teológicas e não estéticas as razões para a diferença. Basta dizer aqui que o culto luterano é “rico” e o calvinista é “nu”.
As diferenças teológicas entre Lutero e Calvino refletidas nas diferenças de ênfase litúrgicas são de total importância porque esta base litúrgica prepara o caminho para as diferenças entre os Anglicanos e os Puritanos na Inglaterra. É visto que a posição do Clero Estabelecido na Inglaterra era a de Lutero, enquanto que as visões dos Puritanos eram aquelas de Calvino. A analogia não é exata em cada detalhe, mas num todo é muito boa. Pode ser certamente mantido, no entanto, que as diferentes concepções da autoridade das Escrituras na mente de Lutero e na mente de Calvino reapareceram na controvérsia litúrgica entre os Puritanos e o clero Estabelecido, os Anglicanos. Os Puritanos foram os herdeiros dos Reformadores.
Extraído e traduzido do The Worship of the English Puritans, páginas 13 a 24, de autoria do Dr. Horton Davies – Editora Soli Deo Gloria Publications.
[1]James Moffatt, ‘Lutero’, capítulo viii de Christian Worship (ed. cit.) p. 127
[2] Formula da Missae de Lutero, em Carl Clemen Quellenbuch zur praktischen Theologie, I Teil (Giessen 1910) p. 27f
[3] Clemen op. cit. p. 27
[4] ibid.
[5] Maxwell The Liturgical Portions of the Genevan Service Book (1931) p. 70; os itálicos são meus.
[6] Moffat op. cit. p. 125
[7] Clemen op. cit. p. 26
[8] Moffat loc. cit.
[9] Moffat op. cit. p. 129
[10] J. S. Whale, “Calvin”, ch. x. of Christian Worship p. 156.
[11] Inst. I. iv
[12] Calvino La forme des prières ecclésiastiques, em Clemen op. Cit. Pp. 51-58
[13] F. O. Reed Public Worship in XVIth century Calvinism (tese para graduação – não publicada – na B. Litt. na Universidade de Oxford) ch. ii
[14] Maxwell op. cit. p. 203
[15] The Protestant Doctrine of the Lord´s Supper (1928) ch. ii
[16] Inst. IV xix 2
[17] Le Catechisme français de Calvin, citado por F. O. Reed op. cit.
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