Leitura do Texto
Por Dr. Sinclair Ferguson
Isso é ainda mais enfatizado no Novo
Testamento pelo fato de a fé ser um fruto do ministério do Espírito e ser vista
no Novo Testamento como um dom de Deus. Aqui, também, há uma evidente tensão
entre a atividade do Espírito e a resposta humana. Paulo provê para nós uma
importante perspectiva neste aspecto, delineando uma analogia ulterior entre
crer e sofrer: “Porque vos foi concedida
a graça de padecerdes por Cristo, e não somente de crerdes nele” (Fp 1.29).
O sofrimento, como a fé, é um dom da graça na experiência cristã. Mas o dom do
sofrimento não nos é dado convenientemente como um fait accompli. Quem sofre somos nós, não Deus. Não obstante, esse
sofrimento é um dom procedente dele. De uma forma paralela, a fé não é um
pacote posto em nossas mãos. É a atividade do homem como um todo, direcionada
pelo Espírito para Cristo. Deus não crê por nós, nem em nós; nós é que cremos.
Todavia, é somente pela graça de Deus que cremos. Seu dom é simultaneamente ato
nosso.
O texto clássico em relação a isso é
Efésios 2.8: “Porque pela graça sois
salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus”. Há aqui um
problema exegético bem notório: qual é o antecedente de “isto”, e, portanto, o
que exatamente constitui o dom?
Para o leitor casual, “fé” se lê como
o antecedente natural (é o antecedente imediato). Mas “isto” (touto) é neutro, enquanto ambos os
antecedentes prévios são femininos (charis,
“graça”, e pistis, “fé”); assim
também “salvação” (soteria), que pode
ser entendida como o antecedente não escrito: “e isto (ou seja, a salvação) não
vem...”.
É um princípio há muito reconhecido
que em linguagens onde o gênero gramatical de um pronome não pode concordar com
o gênero do próprio antecedente, também não pode concordar com o gênero da
palavra que o denota.([1])
Neste contexto específico, visto que tanto pistis
como charis não são gênero neutro, tampouco podem servir de antecedentes.
Três considerações sugerem que o
antecedente (ou seja, a coisa que é o dom de Deus) é a fé (pistis).
(1) Ela é o
antecedente imediato e, portanto, o mais natural.
(2) Seria uma
tautologia não usual (porém admissivelmente não impossível, como Rm 2.24 e 5.15
indicam) falar da graça como um dom de Deus, já que, por definição, a graça é um dom de Deus.
(3) Ela fornece
uma redação coerente do pensamento padrão de Paulo, o qual pode ser
parafraseado assim:
Deus nos vivificou – pela graça sois salvos (2.5).
Deus nos ressuscitou – para mostrar
sua graça (2.6-7).
E é deveras pela graça que tendes sido
salvos (2.8)!
Esta graça, porém, não só não nos envolve como também ignora nossa ação
(a salvação é pela fé, ou seja, envolve nossa resposta ativa).
Não obstante, esta fé ativa, de nossa parte, não prejudica
a graça.
Pois até mesmo a capacidade de crer
não é nossa independentemente.
A fé (também) é o dom de Deus.
Portanto: a salvação que é pela graça é também pela fé.
Mas, como agora se torna claro, esta
salvação,
embora recebida por nossa ação (fé),
não é desse modo “pelas obras”.
Ela envolve nossa atividade,
mas não deixa espaço para nossa
vanglória (2.9).
Daí:
a salvação não é obra nossa;
ao contrário, somos feitura de Deus
(2.10).
Mesmo que adotemos o ponto de vista de
que “ser salvo através da fé” é que forma o antecedente (ponto de vista
favorecido por Calvino e outros), haveria ainda um indício de que a fé é um dom
da graça. Que a fé, em qualquer caso, é vista por Paulo como um dom, é
confirmado em Efésios 6.23, quando ele ora pela “fé, da parte de Deus o Pai e do Senhor Jesus Cristo”. Haveria pouca
importância orar pelo que procede do Pai e do Filho, a menos que a fé seja, em
algum sentido, conferida por eles. Semelhantemente, Pedro se refere aos crentes
como quem “obtiveram fé igualmente
preciosa na justiça de nosso Deus e Salvador Jesus Cristo” (2 Pe 1.1), o
que parece ser uma referência ao conteúdo da fé (fides quae creditur), não do ato (fides qua creditur). Além do mais, no Novo Testamento, o
arrependimento (do qual a fé é inseparável) é visto como um dom (At 5.31;
11.18; 2Tm 2.25); não surpreende, pois, se a fé é também vista como um dom da
graça. Aqui, pois, se dá prioridade à soberania divina (ela é o sine qua non da fé) sem minimizar a
realidade e a significação da atividade dos crentes.
Além do mais, o exercício ativo da fé
(quem crê somos nós, não Deus) não compromete a graça da obra do Espírito na implicação da salvação. É da natureza
da fé que por meio dela recebamos ativamente a Cristo e a justificação nele,
sem contribuir para isso. Acima de tudo, fé é confiança em outro. É a antítese
de toda autocontribuição e autoconfiança.
Paulo faz alusão a isso quando diz que
a promessa da salvação é pela fé para que a mesma pudesse ser pela graça e ser
garantida aos crentes (Rm 4.16). Fé envolve graça sem transformar a salvação em
mérito humano.
Warfield expressa isso de um modo
pitoresco, quando diz:
O
poder salvífico da fé reside, portanto, não nela mesma, mas no Onipotente
Salvador em quem ela repousa. Nunca, na Escritura, por causa de sua natureza
formal como um ato psíquico, se concebe a fé como sendo salvífica – como se
essa disposição mental ou a atitude do coração fosse em si mesma uma virtude
que reivindicasse de Deus sua recompensa ... Não é a fé que salva, mas a fé em Jesus Cristo...
Estritamente falando, não é nem mesmo a fé em Cristo que
salva, mas é Cristo quem salva pela instrumentalidade da fé.([2])
Somos salvos por Cristo através da fé.
O poder salvífico da fé não reside nela mesma, mas no objeto de sua confiança.
Como G. C. Berkouwer escreve em outra conexão: “A fé não possui um único
momento construtivo e criativo; ela repousa única e exclusivamente na realidade
da promessa”.([3])
Há um envolvimento total do crente; ao mesmo tempo, porém, a graça não é
comprometida. O caráter da salvação pela graça é que ela envolve o homem sem
prejudicar a gratuidade da salvação recebida. Otto Weber o expressa bem: “A fé,
segundo a compreensão bíblica, consiste não em ser o homem excluído, mas em ser
o homem envolvido ao máximo”.[4]
Transcrito do livro O Espírito Santo,
pp 171-175; Editora Os Puritanos
[1] Cf. Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, tr. H. De Vries (Nova Iorque: Funk
& Wagnalls, 1900), p. 412; Robert E. Countess, “Thank God for the
Genitive”, Bulletin of the Evangelical
Theological Society 12 (1969), pp.
117-122.
[2] Warfield, op.
cit., p. 504.
[3] G. C. Berkouwer, The
Sacraments (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1969), p. 147.
[4] Otto Weber, Foundations
of Dogmatics, tr. Guder (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1983), vol. 2, p. 147.
2 comentários:
Muito bom texto!
Tenho o livro mas ainda não o li.
Parabéns pelas postagens e divulgação.
*Por acaso você/vocês tem parceria com a editora Os Puritanos?
Um abraço!
Filipe Luiz C. Machado
www.2timoteo316.blogspot.com
Sim, Filipe, somos o Projeto Os Puritanos.
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